Os contratos empresariais frente à pandemia da COVID-19
- Khetlen Marinho
- 20 de jan. de 2021
- 27 min de leitura
Atualizado: 21 de mar. de 2021
Excepcional abertura à solução judicial de conflitos parametrizada no princípio da preservação da empresa.

O Brasil e o mundo foram surpreendidos pela pandemia da COVID-19, que trouxe uma crise econômica jamais imaginada no pós-guerra. Muitos estão sendo e serão os desafios e imprevisíveis, ainda, todos os efeitos dela decorrente, sobre tudo de natureza social.
Contextos como esse estimulam abordar institutos jurídicos moldados ao longo do temo e que tem instrumentalidade no meio social e econômico. Este artigo reflete sobre os contratos empresariais, aqueles celebrados pelos agentes econômicos. Não é seu objetivo rever a teoria geral dos contratos ou o Direito Contratual como um todo. Tal mister não cabe num artigo. Tratar-se-á da interpretação conferida aos contratos mercantis, fora e dentro do contexto de crise, valendo-se das normas jurídicas produzidas antes mesma da pandemia.
O trabalho está divido em quatro capítulos. O primeiro é dedicado ao conceito de contrato, seu comportamento ao longo dos movimentos evolutivos do Estado e seu papel político e econômico, à demarcação da instrumentalidade socioeconômica dos contratos e ao estudo dos princípios contratuais utilizados nas seções seguintes. No segundo capítulo definem-se contratos empresariais, são expostos os seus principais traços característicos e sedimenta-se a ideia acerca da particular incidência de certos princípios aos negócios mercantis.
O capitulo terceiro remete ao significado das disposições da Lei da Liberdade Econômica sobre os contratos, especialmente os empresariais, da qual se infere uma orientação a respeito do tema “revisão judicial”. A quarta e última seção contextualiza os efeitos econômicos da pandemia da COVID-19 e seus reflexos nas relações contratuais empresariais. Com essa nova realidade social, trabalha-se a teoria revisada nos capítulos 1 e 2 e dá-se o desfecho a respeito da possibilidade de revisão judicial dos negócios mercantis, inclusive estabelecendo a parametrização.
Contrato: conceito, evolução do direito contratual, instrumentalidade e princípios.
Este trabalho não discorre sobre a teoria geral dos contratos, tendo objetivos menos pretensiosos. O que não retira a necessidade de trazer à lume o conceito de contrato, a sua finalidade e os princípios ou fundamentos que informam o assim designado Direito Contratual.
Conforme um dos clássicos, “contrato é o acordo de duas ou mais pessoas, para, entre si, constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica de natureza patrimonial”, incluindo-se “na categoria dos negócios jurídicos”. (BESSONE, 1987). Conceito que não discrepa dos ensinamentos de Orlando Gomes (1986), para o qual “contato é o negócio jurídico bilateral, ou plurilateral que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam”, um negócio “cujo efeito jurídico pretendido pelas partes seja a criação de vínculo obrigacional de conteúdo patrimonial”.
Típico instituto do Direito Privado e uma realidade social, “o contrato é um instrumento privilegiado das relações de intercâmbio de bens e serviços” (NORONHA, 1994) e, na seara econômica moderna, importante instrumento realização do tráfico mercantil e de criação de riqueza e em cujo “emaranhado de relações contratuais, tecido pelos agentes econômicos” identifica o mercado. (FORGIONI, 2009).
Esses excertos expõem de certo modo a função ou finalidade dos contratos segundo um olhar tradicional. A instrumentalidade dos contratos acompanhou a transformação ocorrida ao longo dos períodos de evolução dos modelos (notadamente econômicos) de Estado, o que também conduziu à alteração do significado de postulados tradicionais do Direito Contratual, como a autonomia da vontade e a força obrigatória, ramo do Direito Privado que passou a ser informado pelo princípio da função social dos contratos. Assim, é evidente que, hodiernamente, os contratos não atendem apenas aos interesses privados das partes contratantes.
Tradicionalmente, “segundo a doutrina clássica, o contrato é sempre justo, porque, se foi querido pelas partes, resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes”, o que presume “o equilíbrio das prestações” e, sendo assim, aos contratantes “deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por considerações de ordem pública e pelos bons costumes”. (BESSONE, 1987). É do mesmo autor a conclusão de que para a doutrina clássica a autonomia da vontade tem como pressupostos a igualdade dos contratantes.
As mudanças no conteúdo jurídico de tais princípios e a elaboração de outros estão associadas à evolução do papel do Estado ante a sociedade civil, sobretudo no domínio econômico.
Superado o mercantilismo, surge, a partir das Revoluções Burguesas do final do século XVIII, o liberalismo econômico clássico apregoando, essencialmente, a não-intervenção do Estado na economia. De político o liberalismo alcançou conotação econômica, junção creditada a Adam Smith (em 1776, publicou seu livro “Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações” - A riqueza das nações -, no qual referiu que o intervencionismo estatal na economia se apresentava como sendo um óbice ao progresso econômico, pois haveria uma “mão invisível” que autorregularia o mercado) que, valendo-se da filosofia utilitarista, reformulou a ideia de mercado de meio da realização do interesse individual para ambiente no qual os agentes (operadores) buscavam o interesse geral, a satisfação de todos, o bem-estar (NUSDEO, 2001, p. 126-127).
O liberalismo não era apenas uma doutrina econômica, contando com “fundamentos morais, de fonte religiosa, assentes na ideia cristã de que o homem permanece o valor supremo, dotado de ‘direitos naturais’, oponíveis contra a ordem estatal assim como tinha fundamentos políticos”. (NORONHA, 1994). Sobretudo, após o Código Civil francês, em 1804, operando a cisão entre o Direito Público e o Direito Privado, a autonomia da vontade fundada na liberdade contratual – manifestação da própria liberdade política - tornava o contrato lei entre as partes (pacta sunt servanda). Nessa quadra da história o Estado não intervinha da manifestação de vontade dos indivíduos, fossem eles agentes econômicos (comerciantes, artesãos) ou não, cumprindo-lhe, tão somente, assegurar o ambiente (espaços privados) necessário para que cada indivíduo desenvolvesse livremente a autodeterminação. “O Estado liberal era a forma pública de uma sociedade visceralmente individualista”, mesmo fora do âmbito da ciência política. (NORONHA, 1994)
“As imperfeições do liberalismo, no entanto, associadas à incapacidade de auto-regulação dos mercados, conduziram à nova função do Estado. À idealização de liberdade, igualdade e fraternidade se contrapôs a realidade do poder econômico” (GRAU, 2003, p. 15). No que toca ao tema deste artigo, cita-se que o grande resultado das transformações ligadas à superação do liberalismo é a massificação da sociedade, assim descrita por Noronha:
[...]
massificação nas cidades, transformadas em gigantescas colmeias; nas fábricas, com a produção em série; nas comunicações, com os jornais, o rádio e a televisão; nas relações de trabalho, com as convenções coletivas; na responsabilidade civil, com a obrigação de indenizar imposta a pessoas componentes de grupos, por atos de membro não identificado [...]; no processo civil, com as ações coletivas, visando à tutela de interesses difusos e coletivos [...]; nas relações de consumo, finalmente com contratos padronizados e de adesão até com as convenções coletivas de consumo, previstas no Código de Defesa do Consumidor (art. 107)!” (1994, p. 70-71)
Principiando a análise do dirigismo contratual, Bessone (1987) adverte que a liberdade de contratar é apenas teórica em muitas oportunidades (exemplifica com a relação estabelecida entre patrão e empregado), a justificar a necessidade de “um sistema de defesas e garantias, para impedir que os fracos sejam espoliados pelos fortes, assim como para assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre os individuais”, sistema esse levado a cabo por múltiplas intervenções legislativas (regulamentação detalhada) que passaram a dirigir o conteúdo dos contratos (chama a atenção para os contratos de adesão). Tamanha modificação não passou despercebida de outro comercialista de escol, Fran Martins (1993), que atribui a publicização do contrato - “ingerência do Estado nos contratos” - a “contingências oriundas de novas situações econômicas e políticas da humanidade, surgidas principalmente com as grandes guerras que, últimos decênios, têm abalado a estrutura da sociedade [...]. Assim age o Estado, tendo em vista manter o equilíbrio social”.
É nessa segunda fase da evolução - do fenômeno jurídico-econômico do dirigismo contratual, da publicização do Direito Contratual - que se apregoa a morte do contrato tradicional ante a sua substituição por outras figuras (contratos regulados) e porque os contratantes não mais determinavam os conteúdos dos contratos. “O contrato está em crise?”, provoca Noronha (1994), contextualizando a problematização no surgimento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, e suas novas parametrizações, sobretudo para os contratos de massa. O autor, que propôs repensar o contrato, começando pela análise de seus princípios fundamentais, responde negativamente. “O contrato não estava morrendo”, e nem sequer em crise; o que morria era uma “concepção inadequada, que considerava como sendo contratual unicamente uma determinada relação jurídica [...] que pressupunha que as partes fossem [...] igualmente livres. (NORONHA, 1994)
Anote-se, ainda, quanto ao confronto entre os sistemas econômicos liberal e social de Estado, que vislumbrou-se, na década de 1930, diante da Grande Depressão marcada pela situação crítica das economias capitalistas nos países europeus, na Inglaterra e nos Estados Unidos (nestes agravada pelos efeitos da quebra da Bolsa de Nova York, 1929), a adoção da teoria econômica keynesiana, que, sem romper totalmente com o liberalismo econômico, mas colocando fim à crença no laissez-faire, defende a intervenção do Estado na economia para regular o sistema econômico, orientar a riqueza nacional e levar a um ambiente de pleno emprego. E não se olvide que, a despeito da necessidade de desempenho de funções sociais relevantes, o chamado Estado Social intervencionista também entrou em crise. Agigantando-se em seu poder de polícia (não mais restrito a segurança) e no tocante ao extenso rol de atribuições que passou a desempenhar, o Estado se revelou engessado, ineficiente. Sustentou-se que a diminuição do tamanho do Estado seria capaz de resolver os problemas socioeconômicos e que mesmo não sendo abandonada a ideia de intervenção se fazia necessária a reliberalização dos mercados. É o neoliberalismo. E porque contemporâneo a este regime econômico neoliberal, cita-se uma reação à compreensão, utilidade e eficiência do Direito Econômico (próprio do Estado intervencionista), qual seja, o método da Análise Econômica do Direito (AED), que pode ser definida como a aplicação da teoria econômica e de seus métodos no exame do direito - da formação (debate legislativo) à aplicação (debate judicial) - e das instituições jurídicas.
Essas últimas correntes não influenciaram sobremaneira a teoria dos contratos. A passagem do Estado liberal para o Estado liberal sim, conduziu à revisitação do conteúdo dos princípios tradicionais do Direito Contratual, especialmente os da autonomia privada e da força obrigatória, e ao aparecimento do princípio da função social. Este já se apresentava implicitamente, constou o projeto de lei (n. 634-B, de 1975) do qual resultou o Código Civil em vigor, se inferiria das disposições do Código de Defesa do Consumidor e de Constituição Federal de 1988; hoje é explícito, constando o artigo 421 da lei material civil (BRASIL, 2002).
E anota-se que, a despeito de todas as transformações o instituto não sucumbiu, mantendo-se verdadeiro instrumento de colaboração entre as pessoas e de “instituto fundamental na economia de mercado”, bem por isso tem-se como sendo de importância capital a ação estatal sobre os contratos, afinal, “a conformação das relações contratuais importa a conformação do exercício da própria atividade econômica”. (GRAU, 2003). Ou em outras palavras, o contrato é “a veste jurídica das operações econômicas, de modo que constituiu sua função primordial instrumentalizar a circulação da riqueza, a transferência da riqueza, atual ou potencial, de um patrimônio para outro”. (1988 ROPPO apud MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002)
No que toca aos contratos celebrados entre os agentes econômicos, Fábio Ulhoa Coelho se refere a evolução do direito contratual (disciplina jurídica dos contratos interempresariais) nos seguintes termos:
Podem-se divisar, na evolução do tratamento que o direito dispensa aos acordos entre os agentes econômicos, três modelos fundamentais. O primeiro, em que prevalece a vontade das partes, e a interferência do aparato estatal limita-se, basicamente, a garantir tal prevalência (modelo liberal); o segundo, em que a interferência do aparato estatal substitui, em determinadas situações, a vontade manifestada pelas partes por regras de direito positivo (modelo neoliberal); e, por fim, o terceiro, em gestação, em que se distingue o acordo feito por agentes econômicos iguais do contrato entre desiguais, com o intuito de prestigiar a vontade das partes naquele e tutelar o economicamente mais fraco (modelo reliberalizente). (2014, p. 23-24)
Também por conta das diretrizes que informam Código Civil em vigor, máxime a eticidade e a socialidade -, há que se reconhecer, portanto, a existência de uma nova teoria contratual, plasmada não apenas na justiça contratual (interna) e também no contexto social ou na realidade socioeconômica, bem assim que os contratos celebrados entre agentes econômicos (contratos empresariais ou interempresariais) contam, ou devem contar, com uma abordagem que os distinga dos demais contratos de Direito Privado. Seguindo essa ideia, tem-se um (novo) Direito Contratual, a cuja interpretação e aplicação não se pode abstrair os princípios contratuais da autonomia privada, da boa-fé objetiva, da relatividade dos efeitos contratuais, da força obrigatória dos contratos e da função social dos contratos. Para enfrentamento do tema proposto neste trabalho, a análise limitar-se-á aos dois últimos, segundo os contornos atuais e lhes conferidos pelo Código Civil em vigor.
Antes, porém, uma palavra a respeito da constitucionalização do Direito Privado. A constitucionalização do direito conduz à substituição do paradigma da centralidade dos códigos para colocação da Constituição como centro do ordenameto jurídico e da qual provém o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico. Sobre o fenômeno discorre Luís Roberto Barroso (2014):
A ideia de constitucionalização do Direito está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional.
Na extração do conteúdo jurídico dos princípios estudados, não se pode olvidar da constitucionalização do Direito Contratual, a fim de melhor “construir-se” a norma a partir do seu texto e segundo os valores expressos na Constituição.
O princípio da obrigatoriedade contratual ou da força obrigatória dos contratos decorre do princípio da autonomia da vontade e estabelece que o que foi estipulado pelas partes tem força de lei (pacata sunt servanda), daí exigindo-se que o negócio jurídico seja cumprido. Conforme TARTUCE (2007), cuida-se de “princípio implícito aos art. 389, 390 e 391 da codificação emergente”, cujas disposições “afastam qualquer dúvida quanto à manutenção da obrigatoriedade das convenções como princípio do nosso ordenamento jurídico”. Segundo a teoria tradicional, esse princípio atua limitando a revisão dos contratos, que, todavia, na atualidade, não se tem por impossibilitada e é até mesmo viabilizada.
Recorre-se à síntese de Flávio Tartuce (2007) a respeito do tema. O autor, recorrendo a Ricardo Lorenzetti, discorre que devido à emergência dos direitos de terceira geração, relacionados ao princípio da fraternidade (dignidade da pessoa humana, solidariedade social) e às alterações sociais dos últimos séculos, está superado o caráter individualista da obrigatoriedade, e que a intervenção externa que afeta a força obrigatória decorre do interesse coletivo que ele representa. E concluiu:
Dentro dessa realidade, o princípio da força obrigatória, da obrigatoriedade das convenções ou do consensualismo continua previsto em nosso ordenamento. Entretanto, pode-se dizer que esse princípio não é mais regra geral, como antes era concebido. A força obrigatória constitui, desse modo, exceção à regra geral da socialidade, secundário aos princípios sociais contratuais, à função social dos contratos e à boa-fé objetiva. (2007, p. 187)
A função social dos contratos condiciona a manifestação da liberdade de contratar e a vincula, no sentido de que o contrato em seus elementos e a sua execução estão subordinados ao cumprimento da função social. É o que decorre do disposto no artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2002). Segundo MARTINS-COSTA e BRANCO:
Essa norma constitui a projeção do valor constitucional expresso como garantia fundamental dos indivíduos e da coletividade que está no art. 5º, XXII, da Constituição Federal, uma vez que o contrato tem, entre outras funções, a de instrumentalizar a aquisição da propriedade.
[...]
Assim como ocorre com a função social da propriedade, a atribuição de uma função social ao contrato insere-se no movimento da funcionalização dos direitos subjetivos: [...]. Portanto, o direito subjetivo de contratar e a forma de seu exercício também são afetados pela funcionalização, que indica a atribuição de um poder tendo em vista certa finalidade ou a atribuição de um poder que se desdobra como dever, posto concebido para a satisfação de interesses não meramente próprios ou individuais, podendo atingir também a esfera de interesses alheios. (2002, p. 157-158)
E prosseguem definindo a extensão ou o alcance da cláusula da função social:
Integrando o próprio conceito de contrato, a função social tem um peso específico, que é o de entender a eventual restrição à liberdade contratual não mais como uma ‘exceção’ a um direito absoluto, mas como expressão da função metaindividual que integra aquele direito. [...] Em outras palavras, a concreção especificativa da norma, em vez de já estar pré-constituída, preposta pelo legislador, há de ser construída pelo julgador, a cada novo julgamento, cabendo relevantíssimo papel aos casos precedentes, que auxiliam a fixação da hipótese, e à doutrina, no apontar de exemplos. (2002, p. 160, grifo nosso)
Relativamente à revisão dos contratos, Flávio Tartuce (2007, p. 339-340), explorando a figura do fato superveniente, critica a impossibilidade de implementação daquela com base manifestação do princípio da função social dos contratos, haja vista que a lei material civil a condiciona (revisão) à imprevisibilidade (somada à onerosidade excessiva) e que a jurisprudência pátria praticamente sedimentou-se no sentido de que “nada é imprevisto” em termos econômicos.
Somem-se a tais orientações - aplicáveis à generalidade das relações contratuais - o entendimento do professor Fábio Ulhoa Coelho (2012) a respeito de um particular aspecto do princípio da função social da propriedade nos contratos empresariais. Diz o renomado comercialista:
É indubitável que o contrato empresarial deve, como os demais gêneros de contrato, cumprir função social (CC, art. 421). Cumpre-a, como mostra Calixto Salomão Filho, quando os contratantes atentam aos eventuais metaindividuais que poderiam ser afetados, de modo significativo, com o objeto do contrato. Em outras palavras, o contrato empresarial não cumpre a função social quando, embora atendendo aos interesses das partes, prejudica ou pode prejudicar gravemente interesse coletivo, difuso ou individual homogêneo. A cláusula geral da função social dos contratos é, assim, mais uma limitação da autonomia da vontade. (2012, p. 50-51)
Ainda no que toca à diretriz da socialidade, tem-se que o mesmo autor afirma existir, implicitamente, um princípio jurídico do impacto social da crise da empresa, a justificar que “mecanismos de prevenção e solução da crise são destinados não somente à proteção dos interesses dos empresários, mas também, quando pertinentes, à dos interesses metaindividuais relacionados à continuidade da atividade empresarial” (COELHO, 2012), que guarda estrita relação com o princípio da preservação da empresa, estatuído expressamente no artigo 47 da Lei 1.101/2005 (Lei de Falência e Recuperação de Empresa). (BRASIL, 2005)
Por ser desnecessário aos fins de artigo (centrado nos contratos empresariais), não serão abordadas as diversas espécies de contratos derivadas dos muitos parâmetros de classificação. Mas, bastando para a análise empreendida e as conclusões ao final delineadas, indicam-se as características das seguintes categorias contratuais: - contratos consensuais (se aperfeiçoam pelo mero consentimento); bilaterais (as prestações ou obrigações são recíprocas); onerosos (identificam-se porque ambas partes experimentam um sacrifício patrimonial); paritários (as partes ajustam as condições); comutativos-sinalagmáticos (nos quais as prestações se cumprem simultaneamente, em igualdade de direitos e deveres para os contratantes); de trato sucessivo ou execução continuada); e pessoais ou impessoais, sem exclusão de outras modalidades, desde que atendam à necessidade de negocial dos agentes econômicos, sejam elas atípicas ou inominadas.
Contratos empresariais: definição, principais traços característicos, vetores ou diretrizes, particularidade da incidência de certos princípios (aos contratos empresariais)
Conforme COELHO (2014), no exercício de sua atividade econômica o empresário (lato sensu) participa de diversas relações contratuais, regidas por ao menos quatro regimes jurídicos diferentes: cível, trabalhista, consumerista e administrativo. Este artigo não discorre sobre todos os contratos celebrados pelo empresário, limitando-se aos contratos empresariais, mercantis ou interempresariais, aqueles celebrados entre empresários, os quais podem se sujeitar a dois regimes jurídicos: o consumerista, quando um dos empresários ostenta a condição de consumidor na relação jurídica contratual, ou o cível.
A respeito da qualificação do empresário como consumidor, anota-se a existência de certa divergência doutrinária (e jurisprudencial) alimentada pelo conceito de destinatário final, que, por sua vez, conta com três teorias – finalista, maximalista e a do finalismo aprofundado (teoria finalista mitigada). Esta admite um certo abrandamento da regra que define destinatário final, se demonstrada a condição de vulnerabilidade - hipossuficiência técnica, jurídica ou econômica – do empresário (inclusive se pessoa jurídica), o que autorizaria a aplicação das normas do Código de defesa do Consumidor. Assim, sendo possível identificar um empresário-consumidor, porque destinatário final, frente ao empresário-fornecedor, a discussão dar-se-ia, também, com base no diploma consumerista, dotado de normas mais favoráveis ao empreendedor vulnerável e que permite um acesso mais amplo e efetivo à revisão judicial.
Mas a problematização aqui pontuada se refere à disciplina cível dos contratos empresariais, mais especificamente se, diante da unificação legislativa da teoria geral dos contratos no Código Civil, lhe são aplicáveis inteiramente aqueles princípios do Direto Contratual estabelecidos no Código Civil e se resta autorizada - e em que medida e parâmetros - a revisão judicial das relações contratuais.
A par da definição retro (de contratos empresariais), importante para delimitar o objeto de análise, faz-se ainda necessário delinear as principais características inerentes aos contratos mercantis. A finalidade é verificar se eles constituem ou não uma categoria autônoma e sujeita a interpretação segundo diretrizes próprias, o que repercute na definição do conteúdo dos princípios estudados e na incidência e extensão da revisão contratual.
Nessa quadra, reporta-se aos ensinamentos de especial valor científico-metodológico-jurídico de Paula Forgioni (2009) sobre os “vetores de funcionamento dos contatos mercantis”, cujos traços característicos - os mais relevantes segundo os objetivos deste artigo - são aqui reproduzidos resumidamente. A professora das Arcadas alude ao descaso que a unificação dos direitos das obrigações trouxe à teoria geral dos contratos mercantis, a impor essa reflexão que, “após identificar e analisar as semelhanças que os contratos comerciais guardam entre si”, possibilitará “compreender [i] as peculiaridades e o funcionamento dessa categoria autônoma dos negócios jurídicos, bem como [ii] o impacto que causam na dinâmica do mercado, influenciando-a e sendo por ela influenciada”. (2009). Relata a eminente jurista:
Escopo de lucro
Nos contratos empresariais, ambos (ou todos) os polos das relações jurídicas estabelecidas são movidos pela busca do lucro, têm sua atividade — toda ela — voltada para a persecução de vantagem econômica, sendo o contrato um instrumento para atingir este fim.
[...]
O norte do contrato: a sua função econômica
As partes não contratam pelo mero prazer de trocar declarações de vontade. Ao se vincularem, as empresas têm em vista determinado escopo, que se mescla com a função que esperam o negócio desempenhe; todo negócio possui uma função econômica.
[...]
Custos de transação
A empresa contrata porque entende que o negócio trar-lhe-á mas vantagens do que desvantagens. As contratações são também resultado dos custos de suas escolhas; o agente econômico, para obter a satisfação de sua necessidade, opta por aquela que entende ser a melhor alternativa possível, ponderando os custos que deverá escolher para a contratação de terceiros (“custos de transação”).
[...]
Racionalidade limitada
Ao contratar a parte não possui todas as informações existentes sobre a outra, sobre o futuro e sobre a própria contratação; diz-se, assim, que sua racionalidade é limitada.
[...]
Segurança e previsibilidade
Os contratos empresariais somente podem existir em um ambiente que privilegie a segurança e a previsibilidade jurídicas.
[...]
Pacta sunt servanda
A força obrigatória dos contratos viabiliza a existência do mercado, coibindo o oportunismo indesejável das empresas.
[...]
Limitações à autonomia privada
As contratações dão-se dentro dos limites postos pelo ordenamento estatal; o mercado é enformado pelas regras exógenas e não por suas próprias determinações.
[...]
Confiança e custos de transação
A disciplina dos contratos empresariais deve privilegiar a confiança, tutelar a legítima expectativa; quanto maior o grau de confiança existente no mercado, melhores os custos de transação e mais azeitado o fluxo de relações econômicas.
[...]
Egoísmo do agente econômico
A empresa perseguirá antes seu próprio interesse do que aquele do parceiro comercial.
[...]
Contrato como instrumento de alocação de riscos
O contrato é instrumento de alocação, entre as partes, dos riscos inerentes à atividade econômica. O ordenamento jurídico distingue a atribuiu disciplina diversa ao risco normal dos contratos e ao risco extraordinário.
[...] (2009, p. 55-151)
Por conta dessas particulares características, os contratos mercantis se distinguem dos demais de igual classificação - bilaterais, consensuais, onerosos e comutativos.A questão que se coloca é que à falta de uma teoria dos contratos empresariais, todos, indistintamente, têm-se por regidos pelo mesmo Direito Contratual erigido fundamentalmente a partir do Código Civil, cujos princípios basilares não distinguem uns dos outros, como é curial; circunstância a refletir (negativamente) na solução/decisão decorrente da interpretação dos negócios empresariais, notadamente se informada mediante a construção, no caso concreto, do conteúdo dos princípios da autonomia da vontade, da força obrigatória e da função social do contrato.
Alude a doutrina que princípios como os mencionados não tem o mesmo significado nos contratos civis e empresariais, haja vista que estes estão comumente informados por elementos objetivos e subjetivos diversos, como, por exemplo, o escopo do lucro bilateral (a finalidade lucrativa), a contratação pela necessidade de desempenho da função econômica, a busca da melhor relação custo-benefício decorrente da contratação (análise das vantagens e desvantagens), o perfil egoístico dos agentes econômicos e a contratação segundo um risco inerente ao negócio (princípio da inerência ao risco).
Assim qualificados, os contratos empresariais colocam os contratantes em posição simétrica, paritária, em pé de igualdade, não se justificando a intervenção estatal jurídica - legislativa ou regulatória – ou judicial em benefício de um dos polos da relação negocial mercantil. A não ser excepcionalmente, quando verificada a assimetria entre os contratantes, o que ocorre, por exemplo, quando um microempresário contrata com a Instituição Financeira, que revela no caso concreto manifesta posição de superioridade econômica em relação ao mutuário hipossuficiente e dela dependente financeiramente. Daí advertir a doutrina: “Por ser um contrato formado entre desiguais e considerando a debilidade concreta do mutuário, aplica-se o regime do Código de Defesa do Consumidor” (COELHO, 2015).
Desse entendimento decorre que deve ser assegurada a máxima eficácia dadas aos princípios da força obrigatória e da autonomia da vontade, a evitar a resolução dos contratos empresariais e o recrudescimento do ímpeto revisionista. Afinal, a obrigatoriedade do cumprimento desses contratos viabiliza a existência do mercado e coíbe o oportunismo indesejável das empresas e a burla do princípio da boa-fé objetiva (lastrado na diretriz da eticidade). Mais, o vínculo negocial empresarial se perfectibiliza no mercado regulado e ainda que excepcionalmente sujeito à intervenção do Estado (assegurar a livre concorrência, por exemplo). Aliás, a tão desejada segurança jurídica é inimiga da intervenção abrupta do Poder Público, principalmente se judicial e modificadora das condições ajustadas num terreno de previsibilidade.
Ao privilegiar a segurança jurídica, tem-se, naturalmente, mais confiança na permanência das regras e condições, a viabilizar o mercado, maximizar os negócios e reduzir os custos de transação. Inimaginável essas ponderações nas tratativas de contratos cíveis entre particulares que negociam um veículo usado ou um terreno, ou qualquer outro bem patrimonial fora do mercado empresarial.
Nesse sentido, calha citar parte de aresto emanado do âmbito do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2016):
[...]
Efetivamente, no Direito Empresarial, regido por princípios peculiares, como a livre iniciativa, a liberdade de concorrência e a função social da empresa, a presença do princípio da autonomia privada é mais saliente do que em outros setores do Direito Privado.
O controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos empresariais é mais restrito do que em outros setores do Direito Privado, pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos integrantes desse setor da economia.
[...]
No desafio à aplicação dos princípios contratuais edificados no Código Civil vigente aos contratos mercantis, sobretudo se considerada a possibilidade de dirigismos ou intervenções estatais sob o pálio da função social, a tendência deve ser assegurar a higidez do contrato e das condições ajustadas livremente entre as partes, isto é, em condições normais deve-se privilegiar a autonomia da vontade e a força obrigatórios desses negócios[1].
A Lei da Liberdade Econômica e contratos empresariais: uma orientação à não revisão dos CE e à não judicialização - preferência às soluções convencionais.
No ponto, cumpre trazer à lume o fato consistente na aprovação e vigência da Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019, a Lei da Liberdade Econômica (LLE), que instituiu princípios orientadores da sua aplicação, dentre os quais o da “intervenção subsidiária e excepcional do Estado, sobre o exercício de atividades econômicas” (artigo 2º), e da declaração de direitos de liberdade econômica, protetivas da livre iniciativa, do livre exercício de atividade econômica e da liberdade de precificação (artigo 3º). (BRASIL, 2019)
Relativamente aos contratos, destaca-se que a referida lei alterou o Código Civil, acrescentando parágrafos ao artigo 113 (trata da interpretação dos contratos), o parágrafo único ao artigo 421 (fixa que “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”) e o artigo 421-A, neste caso para estabelecer que os “contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais”. (BRASIL, 2002).
Dispondo sobre a limitação à intervenção na economia/atividade econômica (princípio da subsidiariedade), a novel legislação busca intensificar a liberdade de empresa e por um guia hermenêutico, daí as regras que valorizam a autonomia da vontade, a força obrigatória dos contratos e, sobretudo, a não revisão.
As disposições legais sobre os contratos contaram com boa receptividade por parte da doutrina:
Ao estabelecer tal regra (artigo 113) confere-se maior liberdade as partes contratantes, na exata medida em que uma diretriz interpretativa é imposta ao Poder Judiciário quando da apreciação do conflito. Dá-se assim uma desjudicialização desses conflitos, desafogando o Poder Judiciário e ao mesmo tempo conferindo maior segurança jurídica e celeridade aos atos praticados no exercício da atividade econômica. (PEREIRA CALÇAS; MARQUES; ANDRADE, 2020, p. 19-26).
A LLE - e suas disposições - busca informar particulares e o próprio Estado (notadamente o Judiciário, um de seus destinatários) acerca do modelo econômico que se busca implementar: liberalismo econômico e atuação subsidiária do Estado.
O contexto socioeconômico e as relações contratuais empresariais frente à pandemia da COVID-19: abertura à judicialização das relações contratuais.
Ocorre que no início deste ano identificou-se a pandemia da COVID-19 e seus efeitos econômicos passaram a ser sentidos em todo o planeta, nas economias centralizadas (forte presença do Estado) e nas descentralizadas (liberais, de mercado), fazendo-se necessária a forte intervenção (socorro) do Estado na atividade econômica, o que foi de encontro ao plano liberalista-econômico brasileiro.
A pandemia fez diminuir sensivelmente a atividade econômica, afetando diretamente os contratos enquanto instrumentos de circulação da riqueza ou do tráfico mercantil, porque reduzindo drasticamente as contratações ou por pressupor o redimensionamento dos ajustes, tendo em vista um novo e absolutamente imprevisível contexto, um inusitado novo mercado ou mesmo a ausência deste ante a paralisação de algumas atividades econômicas.
É certo afirmar que a realidade se impôs ao Direito Contratual, exigindo das Instituições do Estado a adoção de providências, como a modificação da legislação, o acesso ao crédito e a adoção de políticas públicas de atenção social, como a transferência de renda. E do operador do Direito, máxime o interprete judicial, revisitar o conteúdo dos princípios contratuais e a interpretação dos contratos, mormente os empresariais, posto substancialmente afetados pela crise socioeconômica.
Conquanto seja recomendável, favorável e mais viável as soluções convencionais para os conflitos empresariais que decorrem dos efeitos da pandemia, o contexto excepcional permite a flexibilização da ordem de não judicialização trazida com a LLE. A impossibilidade de cumprimento das prestações contratuais, tal como pactuadas em cadeias de contratos, é um dado da realidade atual, a exigir do Estado-juiz postura diversa daquela descrita no modelo econômico liberal.
Forte na inafastabilidade e na reserva da jurisdição, o juiz contemporâneo, pós-positivista e contextualizado na crise da Pandemia da COVID-19, ao exercer a jurisdição - forma de expressão do poder do Estado e que deve canalizar os fins do Estado (MARINONI, 2000) - constrói a norma no momento da sua aplicação e, sem discricionariedade, revê o conteúdo dos princípios contratuais, impregna-lhes das posturas substancialistas (os valores) expressas na Constituição Federal dirigente e põe fim ao conflito de interesses relacionados às obrigações ajustadas nos contratos mercantis.
Acerca dessa hermenêutica, relembra-se a orientação de MARTINS-COSTA e BRANCO quanto ao disposto no enunciado do artigo 421 do Código Civil:
Em outras palavras, a concreção especificativa da norma, em vez de já estar pré-constituída, preposta pelo legislador, há de ser construída pelo julgador, a cada novo julgamento, cabendo relevantíssimo papel aos casos precedentes, que auxiliam a fixação da hipótese, e à doutrina, no apontar de exemplos. (2002, p. 160, grifo nosso).
Os parâmetros? Situações excepcionais demandam soluções não ortodoxas (legítimas).
Afora a hermenêutica constitucional contemporânea e o pós-positivismo, e para além da relativização da obrigatoriedade contratual e da não revisão judicial dos contratos, propõe-se decidir com a função social dos contratos empresariais e forte no princípio da preservação da empresa. Não olvidando do princípio da proporcionalidade (proibição de excesso).
O princípio da preservação da empresa é derivado do mandamento da função social da empresa (por sua vez oriundo da função social da propriedade) e está normatizado na Lei 11.101/2005 (BRASIL, 2005):
A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Esse mandamento reconhece que, em torno do funcionamento regular e desenvolvimento de cada empresa, não circundam apenas os interesses individuais dos empresários/empreendedores, mas outros metaindividuais (difusos, coletivos ou individuais homogêneos) inerentes a outras pessoas, como trabalhadores e consumidores. (COELHO, 2012).
Pode-se afirmar, que para preservar a empresa, que é a própria atividade econômica (teoria jurídica da empresa adotada no artigo 966 da lei material civil), faz-se necessário amoldar o contrato - instrumento que tem função econômica e é de fundamental importância para o mercado - à realidade, preferencialmente dando-lhe condições para continuidade a partir da revisão judicial. O valor da preservação da empresa se prende à execução e aos elementos contratuais, eis que estes estão subordinados ao cumprimento da função social, conforme dispõe o artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2002).
Em arremate, atente-se que o parâmetro da preservação da empresa serve de fundamento para a realização de um grande negócio contratual e econômico, qual seja, a recuperação (judicial) da empresa, uma vez que o plano de recuperação se reveste desta natureza jurídica – negocial – e uma vez aprovado sedimenta uma composição amigável em torno da continuidade da empresa viável.
Conclusão
Diante das análises e reflexões levadas a cabo no desenvolvimento deste artigo, identificou-se que o contrato é uma realidade social, um instrumento de intercâmbio de bens e serviços, de realização do tráfico mercantil e de criação e circulação de riquezas no mercado, revelando uma instrumentalidade que vai além dos aspectos patrimoniais e econômicos.
O instituto estudado se adaptou historicamente aos diversos modelos de Estado, sendo que a passagem do Estado liberal para o Estado social conduziu à revisitação do conteúdo dos princípios tradicionais do Direito Contratual, especialmente os da autonomia privada e da força obrigatória, dando surgimento ao princípio da função social, hoje implícito no Código Civil em vigor. A instrumentalidade dos contratos acompanhou a transformação ocorrida ao longo dos períodos de evolução, o que também conduziu à reformulação do significado de postulados tradicionais do Direito Contratual, de modo que, hodiernamente, os contratos não atendem apenas aos interesses privados das partes contratantes.
Por força das diretrizes que informam Código Civil em vigor, eticidade e a socialidade, reconhece-se e existência de uma nova teoria contratual, plasmada não apenas na justiça contratual (interna), mas no contexto social, na realidade socioeconômica. Não obstante, é certo que os contratos celebrados entre agentes econômicos (contratos empresariais ou mercantis) contam com uma abordagem que os distingue dos demais, daí falando-se num novo Direito Contratual, cujo princípios devem ter os seus conteúdos jurídicos conformados ao fenômeno da constitucionalização do Direito Privado, a fim de “construir-se” a norma a partir do seu texto e segundo os valores expressos na Constituição.
Esse Direito Contratual contemporâneo é a disciplina dos contratos cíveis e empresariais, resultado da unificação legislativa da teoria geral dos contratos no Código Civil, daí surgindo a questão a respeito da aplicabilidade dos princípios estudados indistintamente a ambas naturezas contratuais. A par da definição de contratos empresariais, fez-se necessário delinear as principais características inerentes aos contratos mercantis com a finalidade de verificar se eles constituem ou não uma categoria autônoma e sujeita a interpretação segundo diretrizes próprias. Expostos os “vetores de funcionamento dos contatos mercantis”, concluiu-se que os contratos mercantis se distinguem dos demais e que por isso aqueles princípios contratuais não se aplicam aos negócios mercantis tal como incidem nos contratos não empresariais, posto informados por elementos objetivos e subjetivos distintos. Corolário disso, resta assegurada a máxima eficácia dada aos princípios da força obrigatória e da autonomia da vontade, a evitar a resolução dos contratos empresariais e a recrudescer o revisionismo, pois a obrigatoriedade do cumprimento desses contratos viabiliza a existência do mercado e coíbe o oportunismo indesejável das empresas e a burla do princípio da boa-fé objetiva.
Seguindo o roteiro proposto para o trabalho, e no desafio da aplicação dos princípios contratuais edificados no Código Civil vigente aos contratos mercantis, vê-se uma tendência em assegurar a higidez do contrato e das condições ajustadas livremente entre as partes, o que foi corroborado pela Lei da Liberdade Econômica, ao alterar algumas normas contratuais do Código Civil.
Por fim, contextualizando o estudo na realidade da Pandemia causada pela COVID-19, que afetou diretamente os contratos enquanto instrumentos de circulação da riqueza ou do tráfico mercantil, e advertindo quanto à melhor viabilidade de soluções convencionais para os conflitos empresariais que decorrem dos efeitos da pandemia, deve ser flexibilizado padrão da não-judicialização trazida com a LLE, ante a nova realidade social e econômica atual, a exigir do Estado-juiz postura receptiva e proativa. Isto é, há uma abertura à revisão judicial dos contratos empresariais regidos pelo Código Civil, o Direito Contratual comum.
Buscando uma solução judicial mais correta, indicam-se os parâmetros para a decisão de solução judicial dos conflitos neste momento de excepcionalidade. Alicerçando-se na hermenêutica constitucional contemporânea e no pós-positivismo, para além da relativização da obrigatoriedade contratual e da não revisão judicial dos contratos, entende-se que a decisão judicial dá-se com fundamento nos princípios da função social dos contratos empresariais, da preservação da empresa e proporcionalidade.
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[1] Não sendo objetivo do presente artigo, tem-se que a conclusão acima não leva em conta os estreitos limites legais da autorizada revisão contratual fundamentada nas figuras da imprevisibilidade e excessiva onerosidade do contrato, que tornam desequilibrada a relação contratual (Código Civil, artigos 317 e 478), circunstância apta até mesmo a autorizar a superveniência de um direito à renegociação.
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